segunda-feira, 14 de maio de 2012

Memórias de uma década

Meus primeiros anos de Eco foram alguns dos piores da escola: não havia dinheiro e os roubos de materiais eram frequentes. Para falar a verdade, nem sequer havia muito o que roubar

POR GUSTAVO BARRETO

Entrei na Escola de Comunicação da UFRJ no dia 11 de setembro de 2002 – sintomático, diria eu – após ter passado por uma verdadeira guerra no vestibular, sem figura de linguagem. Os estudantes enfrentavam o crescente conservadorismo e a “privataria” que assolaram o Brasil e o mundo durante os anos 90 e início da década seguinte. O Governo FHC insistia em tentar minar a democracia interna e a autonomia das universidades públicas, dentro do seu bem-sucedido projeto de sucatear e privatizar o ensino público brasileiro. Entre outros ataques à UFRJ, o então ministro da Educação, Paulo Renato Souza, escolheu o terceiro colocado na eleição de 1997, José Henrique Vilhena, para assumir a Reitoria. Tratava-se de um interventor, na pior acepção do termo.

Meus primeiros quatro anos de Eco foram alguns dos piores da história da escola, segundo relataram diversos professores à época, abertamente ou sob forma de “confissão”, após o ocorrido. A instituição parou de receber apoio financeiro (em parte pela falta de projetos), possuía uma gestão extremamente deficiente, os roubos de materiais eram frequentes e, para falar a verdade, nem sequer havia muito o que roubar. O Laboratório de “Multimídia”, atualmente equipado com mais de duas dezenas de computadores modernos, era um tecnocemitério, com apenas três PCs velhos que serviam, no máximo, para jogar paciência. E haja paciência.

Durante quase toda a administração do então diretor José Amaral Argolo, ouvíamos promessas de que novos laboratórios seriam criados, ou de que novos equipamentos e professores estavam por vir. Para mim – um estudante de Rádio e TV – era desgastante não enxergar qualquer possibilidade de vivenciar a futura profissão dentro da própria Eco. Se quisesse botar a mão na massa, era preciso fazer um estágio. Eu abandonei a estratégia, que me parecia um tanto quanto estúpida, e fui aprender a fazer jornalismo na mídia alternativa ou sindical. A falta de convivência frequente com chefes me fez entender um pouco mais sobre o jornalismo cidadão. Sobre o jornalismo, em geral.

O que ocorreu na gestão Argolo – que teve, registra-se, apoio de alguns dos mais “respeitados” professores da Eco – foi exatamente o contrário: a administração acumulava denúncias de má utilização dos recursos públicos e o então atuante Centro Acadêmico precisava dedicar quase todo seu tempo a reivindicar melhorias, denunciar desvios de conduta e de verbas e buscar informações pouco ou quase nada acessíveis para os estudantes. Participação nem pensar. Na expressão de Argolo, me lembro certa vez, era “temerário” permitir que os “garotos” (os alunos mais jovens) usassem os equipamentos e os recursos públicos da escola. Temerário!

Em 2005, decidi enviar para todos os alunos que estavam ao meu alcance uma carta denunciando detalhadamente a tentativa da gestão de sucatear a Eco e, como se isso não bastasse, perseguir os alunos que não estivessem de acordo com ele e sua trupe. Após uma contundente e persistente ação do Caeco e do DCE, que enviaram denúncias que iam da perseguição a funcionários à má utilização de verba pública, o reitor Aloísio Teixeira assinou no dia 11 de maio uma portaria instaurando uma comissão de sindicância destinada a apurar irregularidades na direção da escola.

No próximo dia 15 de junho completam-se sete anos desde um memorável ato que contou com uma Assembleia de Estudantes e a participação de discentes de todos os cursos – incluindo os de direção teatral, que apresentaram esquetes, e os do curso de radialismo, que levaram vídeos. O gabinete da direção foi ocupado por cerca de cem estudantes, em um protesto cuja legitimidade foi reconhecida até mesmo pela Reitoria e por parte do corpo docente. Os estudantes reivindicavam a elaboração de um projeto pedagógico, reformas físicas na escola, a exoneração de Argolo e a paridade nas eleições para escolha de dirigentes.

Após o sucesso da manifestação, a perseguição promovida por Argolo passou a incluir um processo na Justiça contra uma das lideranças, o então estudante Pedro Martins, instaurado cerca de um mês após a ocupação. Apesar desta ter contado com apoio de diversos CAs, do DCE e de centenas de estudantes em toda a UFRJ – a própria Reitoria pagou posteriormente assistência jurídica a Pedro –, Argolo decidiu processar apenas uma pessoa por “danos morais”. Além do processo civil, entrou ainda com uma ação criminal contra ele e mais quatro alunos – Leila Leal, Carolina Barreto, Carlos Leal e Laura Abrantes, todos membros do DCE – por “desacato”. Eles chegaram a ser intim(id)ados a prestar depoimento numa delegacia em Botafogo.

Em 2007, lamentavelmente, Pedro foi obrigado a pagar 3 mil reais a Argolo, após decisão do STF. A decisão, comentou Pedro à época, mostrou todo o desconhecimento do Judiciário sobre a representatividade dos conselhos estudantis. Atualmente, Argolo encontra-se curiosamente cedido à Escola Superior de Guerra.

Desde 2002, me formei em Rádio e TV, fiz mestrado e estou no doutorado – tudo na Eco. E cá estamos em 2012. A professora Ivana Bentes, uma das que considerou legítima a ação de 15 de junho, foi reeleita recentemente e garantiu maior estabilidade à escola. A Eco retomou os projetos, reinaugurou sua Semana de Jornalismo, fez um dos maiores eventos nacionais de mídia em 2008 – o Fórum de Mídia Livre – e se integrou ao cenário político-cultural do país. E isso não foi feito por uma classe dirigente de sábios iluminados. Foi feito com participação estudantil em parceria com o corpo docente e funcionários.

Não sei que lição posso tirar desses dez anos de Eco. Mas o 15 de junho foi um desses momentos especiais. Durante minha vida acadêmica, que até hoje persiste – e insiste –, sempre tive receio de me tornar um daqueles alunos que vê a universidade como um trampolim para o mercado. A maior parte dos estudantes pouco se importavam com o projeto pedagógico. Para que projeto se é somente o selo que importa? Mas o que havia no mercado de tão importante, pensava eu, que poderia substituir meu compromisso cidadão com a educação pública, gratuita e de qualidade (por exemplo)?

Minha primeira experiência no “mercado” foi na Fiocruz, onde novamente aprendi que a união daqueles que lutam por justiça é muito mais importante do que valores neoliberais mesquinhos que só almejam o lucro e o consumo inconsequente. Depois, só confirmei a mesma percepção em outros momentos de militância dentro da profissão. O “mercado” valoriza aquele profissional que questiona e compreende criticamente o mundo, desde que ele esteja à venda.

Mas, felizmente, existem pessoas que nunca estarão à venda. Eis uma valiosa lição ecoína.
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