segunda-feira, 14 de maio de 2012

O professor doutor

Muniz Sodré fundou a Eco, dirigiu a Biblioteca Nacional e hoje é Obá de Xangô num terreiro na Bahia


POR CAROLINA CARVALHO

Talvez seja sua modéstia – mesmo sendo um dos maiores nomes da comunicação na América Latina. Ou, ainda, o jeito descontraído com que caminha pelos corredores da Eco. O fato é que o carinho de alunos e professores pelo baiano Muniz Sodré de Araújo Cabral vai muito além de seus títulos. “Sou absolutamente grata a ele”, afirmou a professora Cristiane Costa, com um sorriso largo estampado no rosto. Como outros colegas da UFRJ, ela foi aluna de Muniz Sodré na graduação, além de ter sido sua orientanda no mestrado e no doutorado. “Devo muito a ele, desde aprender a escrever para jornal até ter meus trabalhos acadêmicos publicados”, emendou.

Muniz Sodré é um sujeito alto e de cavanhaque alinhado que se define como um “negro moderno”. Aos 70 anos, os cabelos pretos e espessos começam a aparecer num tom mais grisalho. Ele nasceu em São Gonçalo dos Campos, uma cidade no interior da Bahia que hoje tem pouco mais de 30 mil habitantes. Carrega no currículo mais de 40 livros publicados, além de quase uma centena de artigos científicos. É um dos poucos pesquisadores brasileiros da área que tem circulação e respeitabilidade internacional.

Como professor, sempre tentou extrair o melhor dos alunos. Segundo Cristiane, que hoje ministra técnica de reportagem, a mesma disciplina que cursou com Sodré na UFF, ele é duro em sala de aula – ou pelo menos era, no início dos anos 80. “Quando o lead ficava horrível, ele dizia”, contou a professora, numa sala repleta de alunos que aguardavam para se sentar junto a ela e discutir seus textos. “Não bastava o lead responder às perguntas básicas. Ele tinha que estar ‘sensual’”, lembrou, num tom carinhoso.

Em uma tarde recente, sentando em uma carteira no corredor da Eco, Muniz garantiu que não é rígido como professor, mas analisa as produções dos alunos com apuro. “Quero que eles escrevam”, reforçou, com seu tom de voz levemente rouco. “Quero o vernáculo ali, quero criatividade, mas não sou rígido gramaticalmente.” Os estudantes não precisam se sentir intimidados, pois ele analisa até os próprios escritos. “Eu olho um texto meu e digo ‘rapaz, você com essa idade toda escreve mal, como é que pode?’”

Gustavo Barreto é doutorando em comunicação e cultura e teve aulas com Sodré, a quem deve parte de sua pesquisa. Ele atribui a contextualização de seu trabalho a quatro pensadores, e um deles é o professor da Eco. “A ideia que mais me influenciou é a do quarto bios, grande marco da teoria dele”, explicou, sentado em uma sala de um núcleo de pesquisa da Escola. “Em toda a minha graduação eu li e citei Muniz Sodré.”

O conceito de quarto bios foi apresentado pelo professor no livro Antropológica do Espelho, publicado em 2002 pela editora Vozes. Em linhas gerais, é um complemento aos três ambientes filosóficos citados por Aristóteles – o conhecimento, o prazer e a política. Sodré coloca a mídia como o quarto bios, tratando-a como uma forma de vida, e não apenas um meio de transmitir informações.


A trajetória de Muniz na Eco vem desde a criação da instiuição. Após um decreto do presidente Castelo Branco, em 1967, que criava nas universidades as escolas de comunicação, José Carlos Lisboa, professor da escola de Letras, fundou e se tornou o primeiro diretor da Escola de Comunicação da UFRJ. Localizada ao lado de uma delegacia policial na Praça da Bandeira, entre o Centro e a Tijuca, a instituição já foi inaugurada em condições precárias. “Dando aula, a gente ouvia gritos de presos apanhando”, rememorou Sodré. Lisboa recrutou vários jornalistas e intelectuais interessados na área para impulsionar o novo estabelecimento. No grupo, estavam nomes como Danton Jobim, Luiz Costa Lima, Francisco Antônio Dória e, claro, Muniz Sodré, recém-chegado de um mestrado em sociologia da informação e da comunicação em Paris. O professor teve papel fundamental no início do curso. “Os primeiros currículos são todos montados por mim”, disse, orgulhoso.

José Carlos Lisboa foi sucedido pelo jornalista José Simeão Leal, criador da pós-graduação da Eco, com a ajuda do filósofo Emmanuel Carneiro Leão. Juntos, conseguiram também a transferência da faculdade para a Praia Vermelha, onde está até hoje. “Isso aqui não tinha nada”, lembrou Sodré. “Não tinha equipamento nenhum, mas havia um ambiente intelectual interessante.” Em tempos de ameaça de realocação do curso para o Fundão, ele defende a manutenção da escola na Urca. “Nossa história está nessas paredes”, sustentou.

Entre 1986 e 1990, Muniz Sodré dirigiu a Eco. Nessa época, um dos estudantes era Cláudio Besserman Vianna, o falecido Bussunda. O ex-diretor, que considera ter sido “durão” em seu mandato, foi intransigente com o uso de maconha, mas sem recorrer à polícia. “Eu disse que jogaria na piscina quem estivesse vendendo maconha aqui dentro”, contou, com uma risada. Bussunda e outros alunos se divertiam às custas do pulso firme de Muniz, inventando para ele apelidos como “o fodão da Praia Vermelha” e pregando charges cômicas no mural de avisos.

Quase quatro décadas após chegar à Eco, o professor assumiu a presidência da Fundação da Biblioteca Nacional, a pedidos do então ministro da cultura, Gilberto Gil. A instituição estava passando por uma crise. Sodré digitalizou os mapas, investiu na conservação dos documentos e na restauração de títulos do acervo e trabalhou pela instalação de quase duas mil bibliotecas municipais pelo Brasil. Ele avalia sua gestão como bem-sucedida, mas não voltaria a ocupar o cargo, por causa da burocracia de prestação de contas. “É um péssimo negócio ser gestor público”, queixou-se. “Não quero nunca mais uma carga dessas.”

Engana-se, no entanto, quem pensa que os títulos acadêmicos são as conquistas mais valiosas para o professor. A posição que ostenta com mais orgulho é a de Obá de Xangô no terreiro Axé Opô Afonjá, uma das três casas matrizes do candomblé na Bahia. Jorge Amado e Dorival Caymmi ocuparam o mesmo posto, pertencente hoje também a Gil. A denominação é concedida a um corpo de trinta e seis pessoas encarregadas de cultuar o orixá Xangô e mediar a relação entre o terreiro e a sociedade. “Vejo a possibilidade de sair dali uma filosofia genuinamente brasileira. Estudei filosofia estrangeira, mas isso só serve na medida em que eu possa pensar o Brasil”, destacou.

De olho na celebração de seus 70 anos, comemorados em janeiro, a Eco sediará neste ano uma série de homenagens ao professor. A partir deste mês, o Laboratório de Estudos em Comunicação Comunitária, o Lecc, abrirá rodas de debate sobre suas principais obras. No final de abril, acontecerá a “Semana Muniz Sodré”, um seminário internacional que trará à escola intelectuais como Cícero Sandroni, Alberto Dines, e Henri-Pierre Jeudy. A organização do evento é assinada por Raquel Paiva, coordenadora do Lecc e esposa de Muniz. Desde seu aniversário, de acordo com as leis que regulam o funcionalismo público, Muniz entrou na aposentadoria compulsória. Mas ele já disse que não vai arredar pé da sala de aula. “Eu me aposentei, mas já pedi minha emerência. Não vou parar, quero continuar dando aulas. Vou fazer como o Márcio Amaral, que é um dos melhores professores desta escola”, resumiu.
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