segunda-feira, 14 de maio de 2012

Romance dos astros

Não se conheciam e se amavam irremediavelmente. E era daqueles amores que queimam a pele, congelam a mente e vice-versa

POR LEANDRO RESENDE

“A vida é a arte do encontro”, disse o poetinha num daqueles momentos de epifania do artista. “Ledo engano”, foi o pensamento dele naquela manhã cinzenta. “Encontro tanta gente, tanta coisa nessa vida, mas parece que o destino não quer de jeito nenhum que eu a encontre.” Jamais a tivera em seus braços, jamais vira o brilho dos seus olhos, mas ele sabia que era irrepreensivelmente apaixonado. Sequer sabia como ela era, porém sua existência era subordinada a dela, pelo simples exercício diário de imaginá-la. E com tudo isso em mente, diante de tamanhas impossibilidades e anseios insatisfeitos, não quis sair da cama e tentar colorir seu dia – aquele estava fadado ao monocromatismo mais triste de uma escala de cores.

Enquanto ele desistia de mais um dia de angústia, ela dormia seu sono habitualmente entrecortado: ora sonhava como ele era, ora pensava numa maneira de um dia encontrá-lo. Muita gente dizia que seus olhos brilhavam, mas ela não ligava para qualquer galanteio, fosse de quem fosse. Sabia que seus olhos brilhariam de verdade quando entrassem em contato com os dele e tinha vontade de sentir esse ardor no olhar. Por isso, vagava solitária em todas as suas madrugadas, cantarolando baixinho qualquer coisa de amor, qualquer coisa de sonhos, qualquer coisa de esperança. Seu corpo frio e rijo contrastava com a necessidade de dar vazão ao brilho quente daquele olhar, faróis em meio a uma imensa escuridão.

Não se conheciam e se amavam irremediavelmente. E era daqueles amores que queimam a pele, congelam a mente e vice-versa. Como casal, em termos físicos, mal sabiam eles que eram incompatíveis, pelo menos aos olhos de harpia da sociedade: ele era grande, corpulento, forte e muitos anos mais velho do que ela, frágil, dócil, por vezes tímida, dando seus meio sorrisos, por vezes desinibida, mostrando sorrisos inteiros. No jeito de ser também se diferiam, pois ele era expansivo, irritadiço e jamais deixava alguém tomar o seu protagonismo. Era também um ótimo conselheiro e um excelente amigo, sempre disposto a abraçar com força quem desejasse dele se aproximar. Ela, por sua vez, era mais introspectiva e silenciosa, uma excelente confidente. As pessoas que a escolhiam para o convívio podiam confiar-lhe os mais escabrosos segredos – sua boca era um túmulo, e jamais entregou sequer um casal de amantes que com ela se confessara.

Ele, Sol, o astro-rei, disputado por diversas estrelas do céu, ficava mais cansado a cada dia. Queria ver pela primeira vez a sua amada, encará-la em toda sua plenitude, “amá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la”, como escreveu outro poeta. Ela, Lua, partilhava do mesmo anseio, queria poder dividir os segredos que escutava com outro alguém. E, noutra manhã cinzenta, o Sol quis colorir seu dia, e explicou seus anseios para Aquele que o criara. Disse que estava farto de viver angustiado, queria viver o amor, sabia de sua existência. O Criador não titubeou. Disse que era impossível. Se Sol fosse viver seu grande amor, toda a ordem estabelecida em Sua criação seria subvertida. Atarefado com os problemas criados por sua filha mais levada, a Terra, deixou Sol a ver navios, sem maiores explicações, sem nem ao menos dizer quem era esse amor.

Com o peito insuflado de coragem, Sol resolveu ir ao encontro do seu grande amor. Vagaria pelo espaço, perguntaria as outras filhas do Criador, mas a encontraria. Conversando com Terra, descobriu que ela possuía bilhões de filhos, e alguns deles ficavam admirados olhando para o céu quando ele ia se deitar. Dotado de ainda mais coragem, Sol transformou-se no mais errante ser concebido pelo Criador, o humano, e desceu à Terra.

Astro que era, não percebeu o desarranjo que sua ida à Terra provocou naquelas estranhas criaturas chamadas “humanos”. Elas sentiam frio, sentiam medo e se perguntavam a todo instante: “Onde está o Sol, onde está o Sol?” Vagando por entre aquelas criaturas, esperando que alguém começasse a olhar pro céu, Sol ria, pois estava ali, no meio deles. Quando já se cansara de tanto andar, o céu cinzento adquiriu um tom branco platinado, lindo, e alguns começaram, admirados, a olhar para o horizonte e ver o astro que despertava.

Sol não pestanejou e reconheceu ali a amada dos seus sonhos, a fonte de suas angústias e seus desejos. Era ela. Os humanos a chamaram de Lua, e Sol se indagou o porquê de o Criador ter escondido dele tão magnífica criação. Depois de um brilho intenso, a luz de Lua gradativamente foi ficando mais fraca para o desespero de Sol, que nem a contemplara direito. Foi aí que ele se revelou um astro e pediu que Lua fosse sua companheira. E ela, com o brilho fraco, disse repetidas vezes que não, até que sua luz desapareceu no horizonte.

Admirado e assustado com tudo aquilo, o Criador interveio e trouxe Sol de volta para o Céu. Era chegada a hora de colocar Sol e Lua frente a frente. Ele estava cansado, mas mesmo assim não deixou de ficar embevecido com a beleza de Lua. Ela respirava ofegante, exausta e fraca, pois seu brilho se esgotara muito rápido. Fixou seu olhar na opulência daquele que era o objeto de procura das suas madrugadas.

O Criador pôs-se a falar. Explicou que Sol e Lua formavam um casal, mas que jamais poderiam se encontrar. Ele fornecia o brilho que emanava dos olhos dela. Ela fornecia-lhe o descanso necessário para que seu trabalho fosse desempenhado dia após dia. Um dependia do outro, mas não poderiam se cruzar: seria perigoso para Seus netos, os humanos, filhos da Terra. E seguiu com as explicações, que Sol e Lua já não estavam mais escutando. Queriam aproveitar aquela troca de olhares, que seria a última. Lua nem deu bola quando Saturno passou perto lhe oferecendo anéis para reavivar seu brilho. Seu Universo estava à sua frente, não precisava de sequer uma palavra, de sequer um gesto.

E foi aí que fizeram a combinação decisiva, sem ao menos balbuciar uma sílaba – se falaram no olhar. Dali em diante teriam grande influência na Terra, e quando o Sol fosse o protagonista do momento, se encarregaria de encher de coragem todos aqueles dispostos a lutar por qualquer coisa de amor, qualquer coisa que valha a pena. Quando a Lua fosse substituí-lo, estaria incumbida de ouvir, aconselhar e acalentar os que se lançavam a procura do amor, abençoando seus sucessos e revertendo seus fracassos. E dessa combinação nasceu Tempo, primeiro compreendido como a marcação da sucessão cotidiana de Sol e Lua. Depois, assim os humanos aprenderam, Tempo foi visto como o grande remédio para os amores incompreendidos – e como a maior semente dos amores duradouros.

Diante de tudo isso, Sol jamais deixou de colorir uma manhã cinzenta. A cada canto de galo que ouviu, desde aquele dia até a eternidade, acordou feliz.

(*) Conto livremente inspirado na canção homônima de Luis Carlos da Vila.
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